crítica

Ousar as profundezas [Moby Dick]

Encenação: Yngvild Aspeli Intérpretes e marionetistas: Sarah Lascar, Daniel Collados, Alice Chéné, Viktor Lukawski, Maja Kunsic, Andreu Martinez Costa Com a participação especial de: José Neves (ator do núcleo residente do TNDMII) Música: Guro Skumsnes Moe, Ane Marthe Sørlien Holen, Havard Skaset Marionetas: Polina Borisova, Yngvild Aspeli, Manon Leblanc, Sebastien Puech, Elise Nicod Dramaturgia: Pauline Thimonnier Cenografia: Elisabeth Holager Lund Figurinos: Benjamin Moreau Desenho de luz: Xavier Lescat, Vincent Loubière Som: Raphael Barani Vídeo: David Lejard-Ruffet Assistente de encenação: Pierre Tual Produção executiva: Claire Costa Administração Plexus Polaire: Anne-Laure Doucet, Gaedig Bonabesse Fotografias: Christophe Raynaud de Lage 

Cia. Plexus

4 de Maio de 2021, TNDMII – FIMFA Lx 2021

Alors, fous-moi la paix avec tes paysages. Parle-moi des sous-sols.

Samuel Beckett

O que acontece quando as marionetas contam histórias? Para Yngvild Aspeli, as marionetas e as matérias surgem como necessidade de comunicar, como possibilidade de discorrer narrativas multi-sensoriais. Nos espetáculos da Cia Plexus Polaire, as histórias são contadas na articulação de palavras, ambientes e sensações; na articulação de diferentes variantes discursivas que ressoam do confronto entre corpos de atores e corpos ficcionais, multiplicando as vozes enunciativas e os pontos de vista nos jogos de escalas. Tal como em Cendres e em Chambre Noir (espetáculos apresentados no FIMFA em 2017 e em 2019), em Moby Dick multiplicam-se as linguagens e a história é contada numa partilha de enunciação entre atores e marionetas (sete atores-manipuladores e cinquenta marionetas), mas também pela música (onde contamos com a orquestra submersa composta pela baixista Guro Skumsnes Moe, o guitarrista Havard Skaset e a percussionista Ane Marthe Sorlien Holen que recordamos do espetáculo Chambre Noir), pelas projeções de vídeo e pela conjugação de elementos visuais, cruzando diferentes versões e camadas de narração.

Chamai-me Ismael. Talvez alguns de vós esperassem, tal como eu, ouvir a narração de Ismael logo ao subir do pano de Moby Dick; lembrando as primeiras frases de Melville, a recordar a necessidade de os humanos partirem, atraídos para a água quando acossados pela melancolia. O súbito desejo de viagem que conduz os passos até ao mar. Mas é sobre as profundezas, mais do que sobre paisagens que nos fala esta versão de Moby Dick. Não silenciar os mortos é o primeiro apelo do espetáculo. Se as marionetas são desde a Antiguidade os interlocutores privilegiados para chegar ao mundo dos deuses e dos mortos, permanecem em palco esses seres de fronteira, corpos fictícios que enquanto duplos do corpo biológico têm a vocação de nos confrontar com a vertigem de um lugar entre dois mundos.

O esperado relato de Ismael chega um pouco depois e será essa narração um dos poucos momentos em que por instantes sentimos ir à tona, adiando a apneia seguinte. É também Ismael que nos fala do marinheiro Queequed que tomado por uma febre inabalável se preparou para morrer, mas que de súbito pede para ser transferido para a sua rede, lembrando que ainda tinha coisas a fazer em terra e que mudando de ideias declara: “Ainda não posso morrer. Se um homem decide viver não é uma simples doença que o vai matar. Nada o pode matar a não ser uma baleia ou uma brutalidade cósmica da natureza”. Ismael traz-nos novamente à tona falando da loucura de Ahab, a lembrar que há sabedoria na infelicidade, mas advertindo para aquela infelicidade que já é loucura.

Além de revisitar o texto de Melville, a história é contada com o apelo de completar pedaços de memória por preencher; Yngvild Aspeli concretiza com esta criação a ligação de pontes entre a memória e o imaginário, evocando a história do seu avô marinheiro: “O meu avô era marinheiro. Ele tinha uma mulher nua tatuada no braço e lembro-me do seu cheiro a peixe e sal, a alcatrão e tabaco. O meu avô veio de uma ilha na costa oeste da Noruega, um pequeno porto cheio de navios e línguas estrangeiras, pescadores, marinheiros e crianças à espera de pais que nunca voltaram do mar. Uma paisagem de vento e de mulheres de pé a observar o horizonte, rezando para o oceano trazer os seus homens para casa. Rostos desgastados e salgados, mãos calejadas e igrejas com barcos pendurados no teto, na esperança de proteção. Um cemitério tão árido e rochoso que, para poderem enterrar os mortos, tiveram de o encher com a terra que servia de lastro aos navios que vinham comprar o peixe seco e salgado. Os meus antepassados estão, portanto, enterrados com terra vinda de Portugal” [1].

No jogo entre corpos animados e fictícios, há um dado momento em que as marionetas representam os vivos e os atores representam a morte, as parcas que os levarão. O apelo para não silenciar os mortos é repetido, lembrando os corpos que jazem no mar sem sepultura. São corpos perdidos no mar, sem coordenadas, como a perda de coordenadas que atormenta o capitão Ahab, buscando rotas nos mapas, embriagado pela sua audácia e desejo de vingança. Em corpo de marioneta de grande escala Ahab procura rumos obstinado, até surgir como um náufrago suspenso; preso por fios, o corpo marionético é um corpo à deriva, prisioneiro das cordas do seu barco que o iça e o lança, ao ritmo da sua própria fúria. Ao longo do espetáculo, os corpos, as figuras e as matérias parecem transitar sem coordenadas e sem pontos de apoio, a não ser no abandono do abismo, no movimento do náufrago que se deixa descer, sem resistência.

Moby Dick convida então a esse mergulho ao abismo, recordando que Starbuck, primeiro imediato do capitão Ahab, dizia que ter medo era a primeira condição para entrar a bordo na tripulação do Pequod. Logo nos primeiros minutos do espetáculo, percebemos rapidamente que quem não entra com medo fica em terra. Da terra, imagino que seja possível ver outro espetáculo; não melhor nem pior, mas certamente diferente daquele que vivi.


[1] Ingvield Aspeli apud programa do espetáculo Moby Dick

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